segunda-feira, 14 de setembro de 2015

VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER: nova forma, acabemos com isso!

Intimidade na internet - ´REVENGE PORN´ - nova forma de violência contra a mulher:


Intimidade na internet - REVENGE PORN - nova forma de violncia contra a mulher
Já é praxe nos noticiários a questão da divulgação na internet de vídeos e imagens com intimidades sexuais de ex-parceiro (as) que, registrando momentos de afeto, após o término do relacionamento tiveram sua confiança violada com a quebra da privacidade.
Não é muito ido no tempo o fato de duas adolescentes terem cometido suicídio por conta de divulgação de vídeos com conteúdo dessa natureza por seus ex-parceiros (1). Mais recentemente, uma estudante da USP teve sua intimidade sexual violada pela nova namorada do ex-parceiro, que, em uma crise de ciúmes provocada pelo próprio namorado, enviou fotografias tiradas de momentos íntimos do então casal a vários contatos virtuais, sendo que as imagens proliferaram nas redes sociais. Esta situação, como é natural supor, provocou-lhe inúmeros transtornos pessoais e até mesmo profissionais (2).
Quando uma imagem ou filme é inserido em ambiente virtual, sua remoção definitiva se torna praticamente impossível, até porque cópias feitas podem ser publicadas, perpetuando o suplício da vítima. Por despertar intensa curiosidade, tal material costuma gerar grande número de acessos e compartilhamentos e, quando chega até a mídia, geralmente atribui-se responsabilidade à mulher, desconsiderando que os momentos que originaram os registros fotográficos ou videográficos eram de cumplicidade e confiança, e, portanto, totalmente justificados.
A vítima sofre, assim, de dupla punição: além do constrangimento gerado pela divulgação das imagens de sua intimidade a quem não era o destinatário, vê-se também na condição de repositória da culpa que injustamente lhe atribuem, quando não sofre, ainda, a pecha de procurar autopromoção.
Quando os casais estão no auge da paixão, não é incomum gravarem momentos íntimos. Mas se após o fim do relacionamento um deles, munido com as imagens ou vídeos, resolve divulgá-los colocando em risco a moral daquele que apareceu sem dar esse consentimento, estamos diante de uma postura que é conhecida como “REVENGE PORN”, termo que, numa tradução direta, pode ser entendida como “vingança pornográfica”, mas que acontece, em específico, nos ambientes virtuais.
Não se desconsidera que os homens também podem ser vítimas dessa chamada vingança virtual, porém quando isso ocorre os resultados são menos dolorosos à sua honra, eis que nossa sociedade prestigia a sexualidade masculina, que não está submetida por tabus e pré-conceitos. O que ninguém comenta, e que os fatos gritam, é que tal fenômeno, na maioria dos casos, caracteriza-se como uma nova e virulenta forma de violência.
Os avanços obtidos pela sociedade com relação ao trato igualitário entre os gêneros não impede que, até os dias de hoje, a sexualidade feminina ainda sofra formas específicas de repressão, que se sobrepõem para além da repressão sexual gerale comum.
Prova disso se traduz na nossa própria legislação penal, através da qual se pode observar de forma clara que, durante muito tempo, a visão do legislador sobre os crimes sexuais visava tão somente proteger os bens jurídicos moral e sexual que, sem seu consentimento, era atribuído às mulheres (3).
Apenas a partir de 2009, com a edição da Lei nº 12.015, nosso Código Penal trouxe importantes modificações aos crimes sexuais, começando pela nomenclatura - de ´crimes contra os costumes´, passaram a ser designados ´crimes contra a dignidade sexual´ - abrangendo assim, além da violência física, também a violência psicológica contra a mulher.
A mulher que passa pela exposição de uma cena sexual ou de nudismo padece de intensa rejeição social e afetiva, o que pode ser explicado, principalmente, pela rígida moral sexual ainda vigente em nossa sociedade, que permanece inflexível apesar das conquistas de gênero.
Tânia Navarro Swain, ao citar Foucault, deixa claro que, apesar dos avanços, ´[...] os comportamentos ligados à sexualidade são históricos, isto é, mutáveis e diversos de acordo com o espaço/tempo em que são contemplados. No sistema heterossexual, existe uma dupla moral, aquela jungida ao feminino, e a outra, liberal e com limites imprecisos, atrelada ao masculino. Às mulheres, a punição material ou opróbrio social no desvio da norma; aos homens, a condescendência e uma aprovação implícita de derrogação desta última [...]´. (4)
Se antigamente o ´macho´ se vingava da rejeição sofrida com violência física, atualmente há a alternativa de reagir com violência simbólica, que não fere o corpo da ex-parceira, mas lhe infringe intenso sofrimento emocional ao expor cenas e imagens de sua intimidade ao público.
Assim, pode-se observar que o machismo e o preconceito constituem uma via de mão dupla: na conduta psicopática daquele que divulga as cenas íntimas de sua ex-parceira e na sociedade que assiste e pune com maior rejeição a sexualidade feminina do que a masculina, quando colocadas sob o mesmo holofote. O autor e o gesto da divulgação imprópria mal são vistos como recrimináveis.
Mecanismos jurídicos de proteção à mulher ofendida são sempre bem- vindos. E a punição aos seus algozes é necessária: além de apenarem o erro, devem servir à inibição de novas práticas semelhantes por outros “vingadores”.
O crime cibernético ainda não está regulamentado no Brasil – atualmente tramitam dois Projetos de Lei, de números nº 6.630/13 e 5.555/13 (5) – que pretendem tipificar como crime a conduta de divulgar vídeos íntimos a terceiros, prevendo condenações de até três anos de detenção, além de determinar a obrigação de indenizar a vítima por todas as despesas decorrentes da mudança de domicílio, de instituição de ensino, tratamentos médicos e psicológicos e perda de emprego.
Sendo a vítima mulher e tendo com a pessoa que espalhou as imagens uma relação de confiança ou algum vínculo, mesmo que de curta duração, o caso que definimos como ´revengeporn´ pode ser enquadrado na Lei Maria da Penha, que visa proteger a mulher contra qualquer tipo de violência – neste caso, a psicológica.
Tal lei, relembre-se, resultou de tratados internacionais firmados pelo Brasil cujo propósito não se restringia apenas em proteger a mulher, vítima de violência doméstica e familiar, mas também precaver contra possíveis agressões e punir os devidos agressores.
Reconhecida pela ONU como uma das três melhores legislações do mundo no enfrentamento da violência contra as mulheres, sua criação e aprovação enfrentaram obstáculos graves, como o entendimento de que a violência doméstica é crime de menor potencial ofensivo e, principalmente, as relações de dominação do sistema patriarcal.
Inicialmente a Lei Maria da Penha teve sua constitucionalidade contestada, questão que restou resolvida em 2012 pelo STF, que reconheceu a flagrante desigualdade ainda existente entre homens e mulheres na sociedade brasileira (6).
Por essa decisão, o STF determinou que a prática de violência doméstica contra as mulheres necessariamente deve levar o agressor a ser processado criminalmente, independentemente de autorização da agredida.
Ao reconhecer a situação de fragilidade e de extremo perigo em que a vítima de violência doméstica e familiar se encontra, o Estado toma para si a responsabilidade de prevenir a violência, proteger as mulheres agredidas, ajudar na reconstrução da vida da mulher e punir os agressores.
O artigo 5º da LMP renomeia a violência doméstica e familiar contra a mulher, ampliando o conceito e abrangendo as violações que ocorrem não somente no âmbito da unidade doméstica, mas também no âmbito da família e em qualquer relação íntima de afeto.
O artigo 7º da Lei define as formas de violência, identificadas como violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. A divulgação de vídeos e imagens íntimas, então, viola os direitos mais sagrados relacionados à dignidade humana, à liberdade individual, à intimidade, à honra e imagem, bem como à saúde mental - neste caso, pela aplicação do artigo 2º da LMP (7).
A exposição de fotos e vídeos íntimos afronta ainda o art.  da Lei Maria da Penha, que visa justamente expressar que a norma seja interpretada de modo a garantir à mulher a mais ampla proteção contra os atos de violência a ela praticados.
A Lei deixa claro, em seu art. 7º, II, que resta caracterizada a violência psicológica quando a ofensa for praticada mediante qualquer conduta causadora dos danos ali descritos e que sejam capazes de ferir a integridade física ou psicológica da vítima. Tal regra geral, então, abarca de forma completa a exposição não autorizada de fotos ou vídeos íntimos a terceiros.
Em algumas situações, como no caso em comento, a violência psicológica é tão ou mais devastadora quanto a mácula física, deixando marcas permanentes e irreversíveis no ser humano que a sofre.
Importante ressaltar que a Lei Maria da Penha pode ser utilizada em casos como o ´revenge porn´ sem que se exija coabitação atual ou anterior dos envolvidos, eis que o art.  não distingue tal situação, simplesmente facultando sua aplicação a qualquer relação íntima de afeto.
O art. 22 da LMP não prevê solução específica para os casos em que a violência é praticada com a utilização de meios eletrônicos. Porém, o § 1º do mesmo artigo deixa claro que o Juiz poderá lançar mão de outros expedientes previstos na legislação em vigor.Com base no ´poder geral de cautela´, o Magistrado pode buscar em outras fontes normativas as medidas aptas a garantir a segurança da ofendida. Tratando-se de violência psicológica, praticada por meio virtual, fica claro que o isolamento e o direito de ir e vir da vítima podem ser entendidos como uma insegurança psíquica resultante da ofensa.
Entre as tutelas a ser concedidas pelo Juízo, um exemplo é a determinação para que o administrador da página (hospedeiro) do conteúdo não autorizado (foto, vídeo, etc) o retire do ar, eis que sua divulgação também configura ilícito civil – responsabilização é independente de eventual medida penal.
Mas, além da devida aplicação de legislação subsidiária para punir delitos virtuais como o ´revenge porn´, o tema exige uma reflexão pública mais profunda. Após décadas de lutas feministas por ampliação de direitos, depois de a mulher ter alcançado espaços significativos no mercado de trabalho, nas posições de poder e de influência sociocultural e econômica, a sexualidade feminina ainda é vista como uma falta moral, sendo sua exposição pública caracterizada como uma forma de agressão especifica de gênero.
Talvez tal senso seja resultado da cultura patriarcal que deixou sua marca profunda nas relações de gênero, de modo que concepções machistas e não igualitárias continuam a dinamizar formas de discriminação da mulher e persistir nas representações sociais de uma maneira geral.
A criação de mecanismos jurídicos de proteção à mulher vítima deste tipo de violência exige entender e desconstruir os valores sociais e as representações que as sustentam e estamos, enquanto sociedade, apenas no início.
Débora C Spagnol – Advogada
REFERÊNCIAS
(2) Notícia completa no site: http://www.comandorondonia.com/2013/11/estudante-denuncia-ex-namorado-por.html. Acesso em 07/05/15. Observação: Em depoimento tomado após a publicação da notícia, o ex-namorado culpou a atual parceira pelo compartilhamento das fotos.
(3) BIANCHINI, Alice. Artigo científico. A Mulher e os Crimes Contra a Dignidade Sexual. Disponível em http://www.clinicadeadvocacia.adv.br/pdf/A MULHER E OS CRIMES CONTRA A DIGNIDADE SEXUAL (1). Docx. Acesso em 08/04/15.
(4) JUNGES, Márcia. In: Os comportamentos ligados à sexualidade são históricos.Disponível em http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=3339&seção=335. Acesso em 07/05/15.
(5) O Projeto de Lei nº 6.630/13 é de autoria do Deputado ROMÁRIO (PSDB-RJ). Íntegra:http://www.câmara.gov.br/sileg/integras/1166720.pdf. O Projeto de Lei nº 5.555/13 é de autoria do Deputado João Arruda (PMDB-PR). Íntegra:http://www.câmara.gov.br/sileg/integras/1087309.pdf. Osdois Projetos de Lei foram apensados e aguardam apreciação ordinária do plenário desde 06/11/13.
(6) Através do julgamento do HC nº 106.212-MG. Notícia na íntegra:http://www2.stf.jus.br/portalStfInternacional/cms/verConteudo.php?sigla=portalStfDestaque_pt_br&idConteudo=175335. Acesso em 09/05/15.
(7) Lei nº 11.340/2006 - Art. 2o:Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social. Lei na íntegra:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-006/2006/lei/l11340. Htm. Acesso em 07/05/15