Toda mulher gosta de apanhar. O homem é que não gosta de bater.
Nelson Rodrigues
Como não cabe perscrutar as razões da arte, não cabe entender o que fez o inconsciente do grande dramaturgo lançar de si a frase acima. Fato é que seu conteúdo discursivo ainda se encontra plasmado no imaginário popular, talvez pela dificuldade de a sociedade entender os motivos de muitas mulheres não romperem com a violência que vivenciam no seu (nada doce) lar.
Supõe-se que predomine uma natureza, uma espécie perversa de gosto natural. A compreensão do fenômeno, no entanto, exige a análise do papel reservado à mulher nas relações sociais. Facilmente se verificam sobras consistentes do sistema patriarcal, marcado e garantido pelo emprego de violência. Tal dominação propicia o surgimento de condições para que o homem sinta-se (e reste) legitimado a fazer uso da força (física ou psicológica) e para compreender a inércia da mulher vítima da agressão como conivência, principalmente no que tange às reconciliações com o companheiro. Pesquisa da Fundação Perseu Abramo realizada em 2010 conclui que é comum as mulheres suportarem agressões físicas dos companheiros por mais de dez anos.
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Essas mulheres vítimas merecem ser ajudadas em reflexão sobre sua situação no mundo e sua subjetividade. Elas precisam compreender o processo de violência e, a partir dessa consciência, tomar a sua decisão (manter o relacionamento agressivo, buscar auxílio para superar o ciclo de violência, ou afastar‑se, definitivamente, do agressor). Agora, isso não é uma questão de caráter pessoal. Qualquer opção deve ser efetivada com a mulher em situação de segurança de sua saúde, integridade física, psíquica, moral, sexual e patrimonial, dentre outras. É neste aspecto que a
Lei Maria da Penha cumpre o seu mais relevante papel: proporcionar instrumentos úteis à mulher em situação de violência doméstica e familiar. Trata‑se de “normas de discriminação positiva, ou seja, medidas especiais de caráter temporário destinadas a acelerar a igualdade de fato entre homem e mulher”, conforme preceitua o art. 4º, item 1, da Convenção de Belém do Pará, da qual o Brasil é signatário.
Algumas dessas medidas possuem caráter jurídico, outras não têm esse caráter. Dentre essas últimas, vale destacar as Redes de Serviços, bem como as disposições dirigidas ao agressor, no sentido de também nele se investir em novas subjetividades, consoantes com práticas propiciadoras de relações igualitárias com o sexo feminino. A igualdade de gênero, a fim de se tornar realidade, exige que homens e mulheres rompam com as heranças de costumes cuja atribuição de sentidos de vida já não mais se coaduna com o presente. Não pertence ao nosso tempo, por exemplo, o caso ocorrido em maio de 2012, em que um passageiro, já dentro do avião, recusou‑se a viajar porque quem comandava e pilotaria a aeronave era uma mulher.
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Para que tais alterações ocorram, é necessário compreender os modos como a assimetria sexual se processa, afirma-se e reproduz-se em sociedades históricas concretas. Também é importante que se perceba que a diferença de tratamento entre os sexos, com a valorização de papéis atribuídos aos homens, nada mais é do que uma construção social; assim, ela pode (e deve) ser modificada. Um bom caminho a se traçar com vistas a alcançar tal desiderato: implemento de um novo modo de pensar e agir, com valores outros sendo disseminados, prestigiados e estabelecidos por um proselitismo competente.
O modelo ideal é o da livre escolha. Os indivíduos não devem estar tolhidos a papéis sociais previamente determinados e impostos sob pena de censura, castigo ou desprezo. O que se pretende é que cada um dos membros da comunidade (homem ou mulher) possa optar por forma de participação – consciente, pessoal e responsável – na sociedade, e que, em razão da escolha, não lhe seja impresso o rótulo de desajustado (efeminado ou masculinizada). Aspira‑se à liberdade dos jeitos de ser, requisito intrínseco para se chegar à igualdade.
O que se constata, no entanto, é a predominância, ainda, da ideologia que põe em foro de natureza a desigualdade sexual e oculta às próprias mulheres o caráter político das relações entre os sexos, tornando‑as cúmplices de sua desvalorização. Tal assimetria, todavia, tem comportado resistência. Mulheres e homens vêm denunciando‑a, demonstrando a incoerência e a falta de fundamentação, seja lógica, seja jurídica, seja econômica, seja afetiva, seja relacional, da exclusão feminina do espaço público, reivindicando e obtendo o alargamento do lugar que as mulheres ocupam no interior das relações sociopolíticas.
As construções culturais elaboradas ao longo dos séculos a respeito dos papéis sociais atribuídos às pessoas conforme sua pertença a determinado sexo biológico geraram muitas vezes relações assimétricas e hierárquicas entre homens e mulheres em prejuízo destas últimas, fazendo surgir hodiernamente a necessidade de previsões legais que observem especificidades tanto no sentido de superar diferenças, as quais, espera-se, um dia não mais existam (caso das previsões legais especialmente direcionadas ao problema da violência doméstica contra a mulher), como também no sentido de garantir que diferenças naturais de fato existentes não se traduzam jamais em redução ou mesmo aniquilação de direitos.
Para que a mulher supere o passado histórico de assimetria de poder em relação ao homem e atinja um status de igualdade concreta (e não só na expressão legal), é necessário, para além de uma profunda alteração no modo de pensar e de agir social, o erigir de um aparato jurídico próprio, sensível às diferenças produzidas culturalmente e capaz de neutralizá-las. É em resposta a essa demanda tecida pela situação histórica que surge a Lei n.
11.340/2006 –
Lei Maria da Penha.
A
Lei Maria da Penha completou nove anos no dia 7 de agosto de 2015. Passada quase uma década da sanção presidencial ao primeiro instrumento legislativo especificamente direcionado ao combate à violência doméstica, surge um importante questionamento, o qual se constitui, em verdade, em reflexão e balanço: as mulheres estão sofrendo menos violência após a edição da Lei?
O “Mapa da Violência 2015: homicídios contra mulheres” mostra que aumentaram os casos de homicídio femininos nos últimos anos.
[3] Ele traz dados bastante preocupantes acerca de mortes ocorridas dentro da residência da vítima. Não é sem razão, pois, que o Brasil ocupa a posição de 5º lugar entre os países que possuem o maior número de mulheres mortas, num universo de 83 países.
Esse Brasil quantificado vem de um Brasil relapso, ou seja, é um quadro que decorre de uma condição específica, bem identificável. É por isso que, quando analisado o tema sob a ótica da implementação de políticas, programas, planos e diretrizes da Lei, observa‑se que muito pouco foi feito ao longo desses nove anos. O número de Delegacias e de Juizados de Violência Doméstica e Familiar, por exemplo, é bastante reduzido e, normalmente, concentrado nas grandes metrópoles.
O Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher recentemente reconheceu a
Lei Maria da Penha como uma das três mais avançadas no mundo (ao lado da lei que vige na Espanha e da que vige na Mongólia), dentre 90 legislações sobre o tema.
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Não resta dúvida de que a saída deste assunto da esfera privada e familiar para a do debate público, propiciado, em larga medida, pela entrada em vigor da
Lei Maria da Penha, foi relevante para a sociedade (entenda‑se homens e mulheres.
Desde que foi promulgada a
Lei Maria da Penha torna‑se cada vez mais conhecida. Isso tem consequências positivas, pois dizer que há o conhecimento da Lei implica dizer que o conhecimento da Lei assenta-se na sociedade e, principalmente, que as mulheres apropriam‑se desse conhecimento, o que equivale a tomarem conta de seus próprios direitos.
Toda mulher pode ser vítima de violência doméstica, porém o risco de sofrer tal violência não é distribuído igualmente entre as mulheres. A principal determinante para afastar o risco é a forma como a mulher se relaciona consigo mesma. A mulher deve compreender‑se como um sujeito de direito, e não como objeto de uma tradição que a subjuga. Esta é uma preocupação da
Lei Maria da Penha. Este é um resultado que a
Lei Maria da Penha vem construindo, pois ainda é frequente que vítimas de violência íntimo‑afetiva acreditem que há algo errado em si mesmas e alimentam um sentimento de culpa pela violência que sofrem. Outras características: creem que devem cuidar dos outros em detrimento de si mesmas; possuem baixa autoestima, desconhecimento de seus recursos pessoais e de seus direitos; sentem-se inferiores e destituídas de poder sobre suas próprias vidas. Mas não é só à mulher que se volta o esforço civilizatório legal. A Lei também se ocupa (e se preocupa) com as subjetividades masculinas (principalmente as do agressor), bem como traz inúmeros comandos dirigidos à preocupação com os familiares e as testemunhas da violência doméstica e familiar contra a mulher. Estudos demonstram o quanto a violência doméstica e familiar praticada contra a mãe afeta o desenvolvimento psicológico dos filhos, ainda que estes jamais tenham sido vítimas diretas da mesma violência.
O flagrante e absurdo desrespeito aos direitos básicos da mulher no ambiente doméstico, como o direito de uma vida sem violência, justifica a criação de um instrumento voltado a instituir condições de se reverter tal quadro. Há que se entender, no entanto, que a
Lei Maria da Penha, além de gestada por conta de um contexto internacional e de a violência doméstica e familiar contra a mulher se constituir uma das formas de violação dos direitos humanos, é uma lei que se ocupa em estabelecer diversas medidas especiais de caráter temporário, tendentes a modificar ou amenizar o quadro de violência doméstica e familiar contra a mulher. Seu fundamento encontra-se no art. 4º da Convenção para Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW).
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Por ser medida de caráter temporário, a
Lei Maria da Penha vigorará enquanto for necessária para atingir os objetivos para os quais ela foi criada: coibir e prevenir a violência de gênero, no contexto doméstico, familiar ou de uma relação íntima de afeto. E para finalizar, um questionamento:
até quando vamos precisar da Lei Maria da Penha?
[2] Homem reclama de piloto mulher e é expulso de avião. FSP, 23‑5‑2012, C3. Ainda conforme a mesma reportagem, em cinco anos houve um aumento de 318% no total de licenças emitidas para pilotos mulheres.
[5] Diz o documento internacional: Art. 4º 1. A adoção pelos Estados-parte de medidas especiais de caráter temporário destinadas a acelerar a igualdade de fato entre o homem e a mulher não se considerará discriminação na forma definida nesta Convenção, mas de nenhuma maneira implicará, como consequência, a manutenção de normas desiguais ou separadas: essas medidas cessarão quando os objetivos de igualdade de oportunidade e tratamento houverem sido alcançados.
[Alice Bianchini]