Bahia tem 5,5 mil meninas com menos de 15 anos vivendo em uniões conjugais
Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança define o casamento infantil como uma união em que uma das partes tem menos de 18 anos. Esse tipo de casamento é reconhecido como uma violação aos direitos humanos.
Aos 14 anos, uma adolescente está aprendendo a lidar com equações de segundo grau; talvez com a fórmula de Bhaskara. Aos 15 anos, outras estão sonhando com uma festa de debutante – ou, em alguns casos, com uma excursão à Disney. Não foi assim com Maira, nem com Fernanda. A primeira, aos 14, tinha que equilibrar as contas da casa, cuidar de um bebê e de um marido. Já a outra, aos 15, esquecia parte dos seus sonhos para viver os de outra pessoa.
Por aí, há muitas Mairas e Fernandas. São meninas que deixaram a adolescência para trás por um casamento infantil. Isso mesmo: tecnicamente, elas não são mais crianças, mas toda união que envolve pelo menos uma pessoa com menos de 18 anos é considerada pela comunidade internacional como um ‘casamento infantil’. A definição, que veio da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança (CRC) - assinada e ratificada pelo Brasil em 1990 -, significa mais do que um marco de idade: esse tipo de casamento é reconhecido internacionalmente como uma violação aos direitos humanos.
Mas não são meninas que estão longe, vivendo em comunidades exóticas da Ásia ou sob o manto de religiões controladoras no Oriente Médio. Elas estão logo ali: Maira cresceu em Periperi, bairro do Subúrbio Ferroviário de Salvador; Fernanda vive em Vitória da Conquista, no Centro-Sul do estado. Na Bahia, 10 casamentos de menores de 15 anos foram oficializados em 2015, de acordo com as estatísticas de registro civil.
Por outro lado, o número de uniões que não vão para o papel – chamadas ‘consensuais’ – ajuda a ter uma ideia do tamanho do problema: de acordo com o IBGE, só em Salvador, 409 meninas com idades entre 10 e 14 anos viviam em uniões conjugais. Os meninos eram 138, no último Censo. No estado, eram 7,2 mil – sendo 5,5 mil meninas.
O Brasil é o quarto país no mundo, em números absolutos, de mulheres casadas ou vivendo com companheiros aos 15 anos – são mais de 877 mil, de acordo com o estudo Ela Vai no Meu Barco: Casamento na Infância e Adolescência no Brasil, produzido entre 2013 e 2015 pela ONG Instituto Promundo. Em uma pesquisa divulgada no mês passado pela Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança e do Adolescente, a entidade aponta que é preciso pensar em formas para enfrentar essa realidade no país – embora nem sempre ela seja abordada nas discussões sobre proteção a crianças e adolescentes brasileiros.
Criar expectativas
Maira Aparecida já tem 26 anos. Aos 14, engravidou e entrou numa dessas ‘uniões consensuais’. Começou a morar junto com o namorado de três meses, que, na época, tinha 19 anos. Foi a mãe dela quem decidiu que os dois tinham que viver juntos – pelo bem da criança.
Maira engravidou aos 14 anos. Além de ganhar um filho, ganhou um marido. A união durou quatro anos (Foto: Evandro Veiga/CORREIO)
“Ela disse que a gente tinha que assumir. A gente foi morar junto e ela achou que, por ele (o namorado) ser mais velho, ele teria a responsabilidade de cuidar de mim. Mas, se eu tivesse a maturidade que tenho hoje, eu não teria ido. Você cria expectativas, faz planejamento e tem que dividir conta”, analisa.
O casamento acabou depois de quatro anos. Hoje, Maira divide as responsabilidades sobre o filho com a mãe, que deve até pedir a guarda da criança, atualmente com 11 anos. “Já coloquei o pai dele na Justiça uma vez e ele deu (pensão) enquanto estava empregado, depois parou. Eu tenho um problema de diabetes e minha tem medo de eu ter alguma coisa e não poder cuidar de meu filho. Por isso, ela pediu a guarda dele, para que ele tenha alguns benefícios, como plano de saúde”, explica.
Atualmente desempregada, Maira já trabalhou como auxiliar administrativa. Ela conseguiu concluir os estudos fundamentais em tempo – até o Ensino Médio, mas nunca conseguiu fazer um curso superior. “Não me arrependo de ter tido meu filho, mas me arrependo de ter morado junto. Não consegui me formar apesar de minha mãe me ajudar bastante com meu filho. Eu perdi muita coisa”, conta.
Antes presa, depois prisioneira
Hoje, Fernanda, que prefere não divulgar o sobrenome, tem 38 anos. O casamento, firmado aos 15 anos, continua – entre altos e baixos, segundo ela. Mas, diferente de Maira, Fernanda não casou porque estava grávida. A primeira dos dois filhos só veio sete anos após o enlace. Casou por insistência da mãe que, ao ver que a filha estava começando a namorar, ficou com medo de que algo acontecesse fora de um casamento.
“Minha mãe foi criada com muitas regras e trouxe isso para nossa criação. Ela era muito rígida”, lembra Fernanda, que cresceu em um bairro periférico de Vitória da Conquista. Na época, a mãe dela achava que ninguém na vizinhança servia para ser amigo dos filhos. Assim, a adolescente Fernanda foi criada sem liberdade. O portão da casa vivia trancado.
Mesmo assim, o namoro escondido começou aos 13 anos. Logo, foi descoberto e proibido. “Ela colocava meus irmãos para me seguir, me batia muito. Ela achava que, se eu namorasse, por ser imatura, eu engravidaria logo. E vieram muitos atritos, mas ela viu que (o namoro) era irredutível. Ela não ia conseguir mudar. Então, ela propôs o meu casamento. Não fui eu. Ela decidiu que a gente ia casar”.
Foi assim que Fernanda e o então namorado, que, na época, tinha 21 anos, se casaram. Apesar de ter exigido a união, a mãe sequer compareceu à cerimônia civil. Para completar, dias após o casamento, ela teve que lidar com uma transferência do marido – que trabalhava em um posto de gasolina – e uma mudança para Aracaju (SE). Hoje, já voltou à cidade natal, mas o percurso não foi fácil.
“Morei 18 anos de aluguel. Terminei meus estudos do 2º grau (Ensino Médio) em 2010 e comecei uma faculdade de Farmácia em 2013. Adiei muitos sonhos porque meu marido não me deixava fazer faculdade. Ele é bem machista; dizia que mulher casada que fazia faculdade virava vagabunda. Era uma cabeça bem retrógrada. Até para ter amizades, ele não queria”, conta.
“Na realidade, achei que estava me livrando da minha mãe, que nos fazia viver como prisioneiros, e acabei caindo na mão de um marido que fazia a mesma coisa”
Entre tudo que abdicou para casar, o que mais a entristece é lembrar que deixou a própria independência para trás. “Na realidade, achei que estava me livrando da minha mãe, que era uma ditadora e que nos fazia viver como prisioneiros, e acabei caindo na mão de um marido que fazia comigo a mesma coisa. Ele que ditava e eu deixei isso acontecer porque era imatura, achava que mulher tinha que obedecer marido”.
Hoje, as coisas são diferentes, mas Fernanda ainda não tem independência financeira. Precisou deixar o curso de Farmácia por problemas financeiros, mas, no início de 2017, começou a cursar Serviço Social. Há 15 dias, fez vestibular para Direito – seu maior sonho. “Sempre sonhei alto. Quero fazer concurso para ser delegada, juíza, algo assim”. O marido, nos últimos anos, se tornou um de seus maiores apoiadores.
Violência de gênero
De acordo com a coordenadora geral de pesquisa do Instituto Promundo, Danielle Araújo, um casamento infantil também é uma violência de gênero – especialmente porque as meninas são as maiores vítimas. “Há a perda de liberdade dessa menina que assume uma responsabilidade de adulto, mesmo sendo uma criança, e acaba cerceando sua liberdade. Outra consequência grave é a evasão escolar. A gente ouviu que os companheiros estimulam que elas saiam da escola, para controlar melhor essa menina”.
As recém-casadas, mal saídas da infância, ficam, assim, à mercê das demandas dos companheiros – em sua maioria, homens mais velhos. “Na maioria das vezes, o homem é o provedor principal, se não o único. Elas têm uma dificuldade de negociar com eles que vai desde o que comprar na cesta básica em casa até o uso de camisinha”.
Para a coordenadora do escritório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) para a Bahia, Sergipe e Minas Gerais, Helena Oliveira Silva, o perfil dos casamentos infantis no Brasil é diferente de outros lugares do mundo. “No Brasil, é muito mais uma característica da vulnerabilidade das meninas no contexto de desigualdade de gênero. Aqui, você tem um homem que á acionado quando a menina engravida. Outras características se colocam em forçar um casamento ou uma união que não seja casamento com véu e grinalda para controlar as meninas ou a sexualidade delas”.
A resposta, segundo Helena, deveria ser um esforço por políticas e programas de empoderamento das meninas e mulheres, com locais e canais para que elas possam afirmar suas identidades.
O que diz a lei
Pela lei brasileira, o casamento é permitido tranquilamente entre pessoas com mais do que 18 anos. Abaixo disso, só em condições especiais. No Código Civil, o casamento é permitido dos 16 aos 18 anos incompletos com autorização dos pais. Abaixo disso, a lei diz que a menina pode casar se estiver grávida.
O problema é que, segundo o Código Penal, qualquer relação com uma pessoa menor do que 14 anos se configura como estupro de vulnerável. Pelo artigo 217, até essa idade, mesmo que a criança ou o adolescente dê seu consentimento, se trata de um estupro.
“A gente entende que a lei brasileira é contraditória. Tem uma coisa no Código Civil e outra coisa no Código Penal”
“A gente entende que a lei brasileira é contraditória. Tem uma coisa no Código Civil e outra coisa no Código Penal. E em casos de estupro de vulnerável, se o homem diz que vai se casar com a menina, ele não é visto como tal (como autor do crime)”, explica a coordenadora geral de pesquisa do Instituto Promundo, Danielle Araújo.
Mas, diante disso, o juiz Walter Ribeiro, da 1ª Vara da Infância e da Juventude, ressalta que as leis podem mudar. “A sociedade precisa entender que as leis precisam atender ao anseio da sociedade. Há 30 anos, se um pai registrasse um filho fora do casamento, seria crime. Hoje, não é mais. Querendo ou não, a própria dinâmica da vida da sociedade fará com que as leis mudem”.
Ele reforça que a lei não deve estar pronta para ser aplicada ao cidadão, mas para entender as posturas e as culturas da sociedade. “O juiz percebe essas nuances e o melhor interesse daquela questão, por isso, aplica a lei mesmo que ela seja contraditória. O juiz pode buscar subsídio em decisões de tribunais superiores, doutrinas, pesquisadores e até da própria vida”.
Fonte: correio
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